Saúde mental e a visão. Qual a relação da baixa visão e a esquizofrenia?
Meu avô raciocina perfeitamente, mas sofre alucinações.
O que a catarata tem a ver com isso?
Entenda a relação da saúde mental e a visão. O que a catarata tem a ver com a esquizofrenia? Saiba mais nesta história contada por Dr. Ricardo Guimarães, sobre o avô de Charles Bonnet, o Sr. Lullin, um magistrado de 89 anos.
Sempre alegre e de bom humor, Sr. Lullin é um homem muito culto e inteligente. Porém, num dado momento, começou a relatar a visão de fantasmas. Seu médico, de cara associou os relatos como alucinações relacionadas a uma possível doença psiquiátrica. A família logo ficou transtornada. Afinal, na época, o diagnóstico de alucinações relacionado com doenças mentais comumente significava uma coisa: esquizofrenia. Uma condição incompatível com a função de magistrado, já que um juiz deve tomar decisões que afetam vidas, famílias inteiras. Como, então, seria a vida do Sr. Lullin diante de um novo título de esquizofrênico? Quem confiaria na capacidade plena dele na tomada de decisões? Decisões onde o que se espera de um juiz é uma lucidez acima da média?
E foi diante do duelo entre lucidez e devaneios enfrentado pelo seu avô que, mesmo diante de um diagnóstico irrepreensível do ponto de vista médico, Charles Bonnet se viu desafiado a discordar da sentença de esquizofrenia para o Sr. Lullin.
Charles Bonnet um biólogo, filósofo, naturalista, estudante de insetos, reconhecido como um grande cientista, discordou do diagnóstico de esquizofrenia baseado na maneira que seu avô descrevia as “alucinações”. De forma bastante clara, sem medo e sem demonstrar qualquer alteração da sua percepção de realidade, Sr. Lullin, no auge da sua lucidez, relatava em seu diário todas as alucinações com riquezas de detalhes. Em uma delas, por exemplo, ele diz que costumava ver no jardim de sua casa uma procissão de homens vestidos em cinza, e alguns fazendo caretas assustadoras. Já do lado de fora dos jardins, com frequência, ele via uma grande carruagens estacionar em frente à sua casa, em Geneva, Suíça.
Importante ressaltar que, além da “esquizofrenia”, Sr. Lullin também sofria com baixa da visão causada por uma catarata ou pela degeneração macular relacionada à idade (DMRI).
Saúde mental e a visão. O que pode causar as alucinações?
Os episódios de alucinação começam a acontecer em 1758, dois anos depois, em 1760, o neto Bonnet, sempre inconformado com o diagnóstico de doença mental, descreveu e correlacionou, pela primeira vez, alucinações visuais relatadas por seu avô com a deterioração da visão. Isto chamou a atenção dos médicos para a importância de separar os dois diagnósticos, que têm condutas totalmente diferentes. Um é caso para o psiquiatra. O outro para o oftalmologista.
Bonnet era um cientista importante e membro da Academia de Ciências da França. Com seus estudos, chamava a atenção para que os médicos diferenciassem as alucinações provenientes da baixa visual das causadas por um distúrbio mental, como a esquizofrenia. No primeiro artigo publicado sobre o tema, ele defende com propriedade que, pelas características das alucinações, seria possível que os médicos diferenciassem uma coisa da outra. Porém, na época, o artigo não produziu qualquer repercussão no meio médico.
No entanto, em 1937, 177 anos depois, um psiquiatra suíço, George de Morsier, reconheceu a associação de doença mental com uma baixa visão e propôs o nome de Charles Bonnet para a Síndrome. Porém, este artigo também não produziu grande impacto. Mas, assim como diz o ditado “a justiça pode ser lenta, mas não falha”, para a medicina vale o mesmo ditado. Impulsionados por psiquiatras ingleses, suíços e alemães, recentemente, foi iniciada a campanha de conscientização e divulgando dos artigos de Bonnet e Morsier reconhecendo a Síndrome de Charles Bonnet.
Catarata e Degeneração Macular são perdas visuais relacionadas à Síndrome de Charles Bonnet
A Síndrome faz com que uma pessoa, cuja visão começou a se deteriorar, veja coisas que não são reais e tenha as “alucinações”. As causas mais comuns de perda visual na 3ª idade são a degeneração macular relacionada à idade, a catarata, o glaucoma ou até mesmo uma isquemia cerebral na área visual. Estas são as condições degenerativas muito comuns.
No entanto, outras patologias da visão podem ocorrer em uma variedade de manifestações clínicas, produzindo distúrbios visuais positivos, como nas alucinações, e negativos quando na falta de estímulo o cérebro produz manifestações fantasmas. Ou seja: sem dados visuais entrando pelos olhos, o cérebro preenche o vazio e, de forma distorcida, cria ou recupera imagens armazenadas na memória, geralmente aquelas guardadas e geradas por algum medo, fantasia ou trauma do passado. São alucinações visuais complexas, recorrentes ou persistentes, que ocorrem em indivíduos com deficiência visual com cognição intacta e sem evidência de doença psiquiátrica.
“Patologias da visão, como a catarata e a degeneração macular relacionada à idade (RMRI), podem produzir distúrbios visuais parecidos com alucinações. No entanto, pesquisas mostram que a grande maioria dos pacientes sofre em silêncio. Evitam reportar o problema aos familiares e aos médicos, justamente pelo medo de serem diagnosticados como dementes ou esquizofrênicos, alerta Dr. Ricardo Guimarães, médico oftalmologista, Presidente do HOlhos de Minas Gerais.
Janeiro é o mês da campanha que promove conscientização para os cuidados com a saúde mental. Este ano, a Campanha Janeiro Branco enfoca a relação da Saúde Mental e Visão. Pesquisas apontam que a diminuição ou perda da visão afetam a cognição que é uma função psicológica atuante na aquisição do conhecimento e que se dá através de processos como a percepção, raciocínio, imaginação, pensamento e linguagem.
Por este ângulo, a Campanha Janeiro Branco, assim como a descoberta do neto do Sr. Lullin, dão a todos nós a oportunidade de olhar com bastante carinho para nossos entes queridos, chamando a atenção dos profissionais de saúde para a Síndrome de Charles Bonnet. Um condição que esclarece a relação da Saúde Mental e a visão, mas que ainda é bem pouco conhecida e divulgada. Por isso, a atenção e envolvimento de todos pode evitar um erro diagnóstico que pode levar um idoso a uma internação hospitalar ou ao uso de medição psiquiátrica, por questões que poderiam ser resolvidas com a correção de um problema na visão. Importante ressaltar que, além dos idosos, crianças também podem desenvolver a Síndrome de Bonnet.
Em ambos os casos, o trauma produzido pela internação ou os efeitos colaterais da medicação, podem produzir danos irreversíveis, tanto em idosos, quanto em crianças, ambos dependentes do nosso discernimento e apoio nos tratos com a saúde.