Enxergar o mundo com dificuldades, sem nitidez e distorções. Não é normal ver assim

Redação

Palavras que começam a pulsar, tremem, vibram, aglomeraram-se ou até desaparecem. Distorções visuais que, sem dúvida, impactam drasticamente a atenção e a compreensão da informação ou do texto que está sendo lido. Já imaginou como é ver a vida desse jeito? Há também quem tenha um “jeito desastrado” de esbarrar e derrubar tudo ao seu redor. Ou cair subindo e descendo escadas, por exemplo. Pessoas que têm grande dificuldade com a percepção de profundidade e a limitação da habilidade de avaliação tridimensional das coisas.  

Você conhece alguém assim? Aquela pessoa que não consegue fazer esforços visuais prolongados, como ler um livro ou analisar dados em uma planilha de Excel, sem sentir uma sensação de falta de foco ou de movimentação das letras durante a leitura? Pessoas que normalmente respondem sim para as perguntas: sente muitas dores de cabeça? Sente enjoo quando viaja de carro? Tem muita sensibilidade à luz?

Ana Isabel Gúzman é bioengenheira e tem a visão perfeita. Porém, conhece vários casos de pessoas com grande fadiga visual e dificuldades em enxergar o mundo com a beleza e a nitidez que ela enxerga. Em sua tese de doutorado pela USP, investiga as possíveis causas da Síndrome de Irlen (SI). As hipóteses pesquisadas são simuladas computacionalmente. Na Bioengenharia, ela tem a oportunidade de estudar muitas coisas como circuitos, programação, automação e controle, além de partes de Anatomia Humana e Biologia, que são a sua paixão. Especialmente ao que se refere à anatomia do olho e ao sistema visual.

“Os olhos são capazes de mostrar quem realmente somos. É a partir da visão com a qual podemos construir o nosso mundo.”

A pesquisa que Ana Isabel Guzmán está fazendo para a sua tese de doutorado pela USP – Universidade de São Paulo – investiga as possíveis causas da Síndrome de Irlen.

A pesquisadora destaca que a primeira etapa dos trabalhos é de muito aprendizado e estudo, já que ainda há pouca literatura disponível sobre o assunto. Na sequência, Ana vai relacionar seus conhecimentos na Engenharia de Programação com aquilo que é fisiológico, por meio de simulações computacionais e algoritmos.

“Quando conhecemos as partes da anatomia dos olhos e chegamos à retina – e tudo o que está por trás no processamento visual –, passamos a entender como a visão é um universo fascinante, que precisa ser estudado em profundidade para ser compreendido e desvendado.”

Anatomia do olho. A luz entra pela íris, atravessa toda a estrutura dos olhos até chegar à retina, onde será transformada em estímulo nervoso. A partir daí, a informação visual será levada ao cérebro pelo nervo óptico.

Entendendo o sistema visual a partir da retina

É a partir da retina que conseguimos enxergar a luz. A retina tem várias camadas, onde se encontram as células fotorreceptoras. Células que traduzem todos os componentes da imagem e nos ajudam a distinguir bordas e intensidade do que vemos. É lá também que diferentes comprimentos de onda, que tem a luz, são transformados em cores, permitindo-nos ver formas e contrastes. Então, se a retina não está fazendo bem o seu trabalho, isso desencadeia um sinal ruidoso.

O correto funcionamento da retina é fundamental para que o sinal de entrada no sistema visual de mais alto nível seja feito corretamente. Então sobre as principais hipóteses sobre as causas da SI, podemos identificar que o ruído no processamento visual a partir da retina pode ser uma delas.

E como simular computacionalmente o funcionamento da retina?

A retina é composta de células fotorreceptoras com diferentes funções. Por exemplo: temos as células horizontais, que captam a informação das células vizinhas e fazem uma média da informação que está chegando. Estamos falando de um processo fisiológico, mas que pode ser comparado com um circuito eletrônico.

Anatomia da retina. As células horizontais são responsáveis por captar a informação das células vizinhas e ajudar na definição do reconhecimento das bordas e do contraste das imagens.

Pela simulação, é possível testar se a interação das células da retina está gerando alguma distorção. Ela é feita mediante uma cena de filtros passa alta e passa baixa. Por exemplo, pode ser reproduzida com um filtro passa baixa o comportamento das células horizontais da retina que pegam a informação das células vizinhas e mandam uma nova informação visual para o cérebro.

Quando eu coloco uma imagem numa entrada do meu circuito e passo por esse filtro, do outro lado sairá outra imagem. Isso é mais ou menos o que acontece no nosso sistema visual. Enxergamos uma coisa, e, quando essa informação passa pelas células da retina, ela pode chegar ao córtex visual com distorção. Quando as células horizontais funcionam direitinho, a imagem captada é filtrada, tendo diminuída a sua luminosidade.

Desta forma, o sistema visual fica com menos excitação para continuar o processamento. “Todavia, se as células fotorreceptoras não funcionam corretamente, a filtragem da luz não é feita de forma adequada, causando as distorções visuais comuns em pessoas com SI”, explica a pesquisadora.

 

Efeitos que pessoas com Síndrome de Irlen visualizam durante a leitura.  Distorções que dificultam, ou impossibilitam por completo, a compreensão do texto.

 

Filtrar a entrada de luz para tratar a síndrome de Irlen

A luz que enxergamos, mesmo que pareça branca ou amarela, tem todas as tonalidades agrupadas no seu espectro. Cada um desses tons possui um comprimento de onda diferente, segundo uma escala de medição de luz. Então, se sabemos que a luz tem papel causador de estresse visual – e que lâminas ou filtros espectrais ajudam a entender e a solucionar o problema –, queremos explicar pela pesquisa o motivo de tal efeito.

É isso o que as simulações buscam. Pensando de forma mais prática, podemos analisar como é feito o tratamento das pessoas com elevada fadiga visual, a partir da utilização de lâminas (overlays) ou filtros espectrais especiais com a cor necessária para o caso de cada paciente.

“Esses filtros espectrais cortam um comprimento de onda específico, que, por algum motivo, esteja causando ruídos no sistema visual”, afirma Ana. Esse “cortar” significa inibir a visualização dessa tonalidade.”

Por exemplo, o filtro azul vai cortar os comprimentos de onda vermelhos. Já o vermelho vai bloquear os comprimentos de onda azuis. E, como já dissemos, o que a pesquisadora da USP busca é entender por que isso acontece. É esse o ponto chave. Por que o fato de cortar aqueles comprimentos de onda poder ajudar? E por que eles podem afetar diferentes partes do sistema visual?

Entenda como acontece a entrada do estímulo visual – espectros luminosos – a partir da retina até o córtex visual:

“Então, quem conseguir descobrir como os filtros filtram tais comprimentos de onda e ajudam a eliminar os ruídos conseguirá provar qual é a causa da Síndrome de Irlen.”

Interesse pelo mundo Irlen

Ana Guzmán quer ajudar a combater a falta de conhecimento sobre a síndrome, que impõe às pessoas que têm Irlen a condição de viver em uma realidade só delas, na qual acreditam que é normal ver o mundo daquela forma, por não terem outro parâmetro. E, dependendo da severidade do caso, mesmo a duras penas, até conseguem conviver com aquilo. Se ela tiver a sorte de ter pais ou professores interessados, que procurem entender o que está acontecendo e busquem por uma solução, terão a oportunidade de corrigir o déficit e evitar prejuízos provenientes dos distúrbios de aprendizagem causados pela disfunção.

Por outro lado, alguns pais podem dizer: “Ah, meu filho é assim mesmo, é limitado, deixa pra lá”. E, quando isso acontece, muitas vidas e muitos sonhos podem ser descartados.

Ela destaca que, no Brasil, existe uma rede muito grande de famílias e profissionais conectados pela SI que conseguem compartilhar depoimentos pré e pós-diagnóstico com outras pessoas (#IrlenExisteSim). Por outro lado, como o assunto ainda não é muito divulgado na mídia, ainda há pouca difusão nas escolas e entre profissionais da área médica, por exemplo.

Mas, afinal, o que é Síndrome de Irlen?

A Síndrome de Irlen (SI) é uma condição que dificulta o uso pleno da visão e é  caracterizada por um conjunto de sintomas que incluem a fotofobia, ou seja, grande desconforto em lidar com a luz associado a uma dificuldade própria de se adaptar ao ambiente claro e escuro. Outros sintomas muito frequentes são: dores de cabeça, enxaquecas, distorções visuais, além de alterações na orientação visuoespacial (dificuldade com a percepção de profundidade e a limitação da habilidade de avaliação tridimensional das coisas).

As queixas típicas de letras se mexendo durante a leitura são distorções presentes nos diagnósticos para Síndrome de Irlen.

Na maioria dos casos, a falta de conhecimento sobre a SI dificulta o diagnóstico e, com isso, a vida da pessoa portadora da disfunção,  especialmente nos períodos de maior esforço, como atividades escolares, acadêmicas e profissionais que envolvem leitura por tempo prolongado.

A Fundação H.Olhos e o Laboratório de Pesquisa Aplicada à Neurovisão (LAPAN) desenvolvem um trabalho de capacitação voltado para profissionais da saúde e educação. O curso DARV – Distúrbios de Aprendizagem Relacionados à Visão, tem duração de quatro dias e, em sua 35ª edição, já formou cerca de 6 mil profissionais de todos os estados do Brasil.

Os conhecimentos compartilhados no curso DARV permitem identificar, a partir da aplicação do Método Irlen, os distúrbios visuais causados pelo Estresse Visual. A 35ª edição do curso acontece no dia 19 de novembro de 2020. Saiba mais aqui

Diagnóstico e tratamento

A identificação da Síndrome de Irlen é feita por meio da aplicação de um protocolo padronizado, conhecido como Método Irlen. O “Screening” ou “Teste de Rastreio” detecta as distorções visuais e determina a cor das lâminas ou os filtros espectrais que neutralizam tais dificuldades – que variam de pessoa para pessoa.

As lâminas overlay contribuem com o conforto visual dos portadores de SI durante a leitura.

“Quando descobri a Síndrome de Irlen e o tratamento com lâminas e filtros espectrais, decidi ir a Belo Horizonte e fazer o curso DARV – Distúrbios de Aprendizagem Relacionados à Visão –, realizado pela Fundação H.Olhos. Depois de conhecer tantos casos de pessoas diagnosticadas com a doença e como aquilo mudou a qualidade e as expectativas de vida delas, decidi evoluir com as pesquisas e com a tese de doutorado.”

Próximos passos da pesquisa

A SI é uma realidade que afeta grande porcentagem da população brasileira e mundial (prevalência de até 14%). Como próximos passos, a pesquisadora vai investigar e simular outras hipóteses debatidas sobre as causas da SI, dentre elas: anormalidade no sistema oculomotor, deficiência no sistema magnocelular e a hiperexcitabilidade cortical. Distúrbios que também podem gerar o sinal ruidoso e tornar o processamento da informação visual muito mais difícil. E, pela grande rede de feedbacks que tem o cérebro, um erro vai aumentando os outros erros e gerando as distorções visuais.

Saiba mais sobre a Síndrome de Irlen no post Como o estresse visual se manifesta nos portadores da Síndrome de Irlen (SI).

Conheça mais detalhes sobre a pesquisa da USP acessando a matéria Muitas faces da visão, publicada pelo jornal Estado de Minas, na nossa página de materiais gratuitos. Boa leitura!